13/08/2018

+ Cultura – Agosto 2018


Teatro – A Visita da Velha Senhora
 

  

Impressionante a força de um texto classificado como “clássico”, caso de A Visita da Velha Senhora, de Friedrich Dürrenmatt, que se despede, no próximo domingo, do Teatro Popular do Sesi, depois de exitosa temporada que começou no ano passado. A leitura dada pelo diretor Luiz Villaça reafirma os preceitos da atriz Denise Fraga, protagonista da montagem, levantados desde A Alma Boa de Setsuan: extrair do riso a matéria-prima para reflexão sobre nosso próprio momento histórico. E é o grito grotesco e abafado que nos apavora nessa peça, esfregando sob nossos narizes a dúvida: “Será a justiça realmente justa?”

Uma cidade moribunda, onde nem os trens de grande importância fazem parada, cujos investimentos governamentais são simplesmente ignorados, enfim, a miserável cidade de Güllen está ansiosamente excitada com a visita de Claire Zahanassian (Denise Fraga), ilustre (leia-se milionária) filha pródiga que retorna, depois de 30 anos, à terra natal, trazendo esperança aos miseráveis güllinenses. Um coro de cidadãos, sabiamente arquitetado para que seja a própria plateia – o que, ao mesmo tempo, insere-a no contexto espetacular e confere maior responsabilidade ao que está por vir – e a promessa de que Alfred Krank (Tuca Andrada), namorado de Claire na juventude, será o próximo prefeito da cidade.

Sem que os preparativos para a chegada de Claire estejam finalizados, eis que o freio de emergência de um trem que, habitualmente, não para na cidade é acionado e a excêntrica milionária surge com um peculiar séquito formado por um de seus maridos (até o final da peça, ela trocará duas vezes de marido), o mordomo, dois eunucos cegos (interpretados com diferentes nuances de voz por Ary França) e um violonista que toca trilhas a seu pedido (efeito que, ao mesmo tempo, evoca risos e sublinha o caráter anti-ilusionista proposto pela encenação).

Com a sede de vingar toda a humilhação que Güllen a fez passar em sua juventude, Claire é uma Medeia que age objetivamente para chegar a seu intento, sem precisar utilizar de feitiços, mas com a certeza de que os privilégios financeiros que oferece podem corromper a moral dos güllinenses. Denise Fraga impõe-se em cena com todas as camadas da paleta, infinita de cores, a qual desenhou Claire Zahanassian: da soberba altiva, típica dos donos do capital, à brejeirice de ex-prostituta; do mistério – visto como excentricidade – quando de sua chegada, em pura objetividade quando propõe o que veio fazer na cidade; do grotesco – potencializado pela perna e braço mecânicos, com movimentação corporal plenas de domínio da atriz – aos lampejos românticos nas cenas com Alfred, em que o sopro romântico logo recebe uma lufada de ironia quebrando qualquer possibilidade de ficar presa a sentimentalismo; enfim, Fraga tem a medida da dosagem da arrogância cega da vingança e da fragilidade macerada por um falso moralismo que, agora com a oferta financeira que faz, sabe que a máscara logo será dissolvida. E a primeira oferta, o prefeito, em nome da cidade, recusa. Mas os fatos que se sucedem vão desenhando a queda da “moral humanista” que tanto envaidece os güllinenses.

Em contrapartida ao circo armado por Zahanassian, um dos que preserva a consciência real do porvir, sobretudo pelo instinto de autopreservação, é Alfred Krank, em composição que revela um emaranhado de sentimentos: a ansiedade adquirida com o medo, o saudosismo seguido pelo arrependimento, até, fechando o ciclo percorrido pelo herói trágico, o entendimento de que Claire se tornou o que é devido às suas ações no passado e à aceitação com o seu sacrifício.

Entretanto, em sua derradeira conversa com o prefeito, é taxativo ao sublinhar que sabe que vai morrer, mas que não pode aliviar a culpa de cada um dos güllinenses, o que remeteu ao conceito de “culpa coletiva”, refutado por alguns filósofos alemães como Jasper, Harendt e Voeglin, em que ressaltam a responsabilidade individual de cada cidadão alemão que colaborou ou mesmo se calou fingindo não saber das atrocidades cometidas pelo Partido Nazista, tendo em vista a ascensão de uma Alemanha falida e humilhada após a Primeira Guerra. E, aproximando fisicamente e temporalmente de nossa realidade: até que ponto bater panela, enxotar esse ou aquele partido, acusar alguns políticos e fazer vistas grossas a outros realmente foi um efeito de justiça? Ou seriam nossas panelas como as palmas dos güllinenses, inclusive a plateia que também segue os atores, artefatos que somente lidam com apenas um dos pontos de vista da situação, ressaltado pelo cinismo sensacionalista da narrativa do jornalista (Ary França)?

O Teatro Épico é assim: não dá respostas, mas deixa questões. E temos muitas perguntas a nos fazer. Luiz Villaça, Denise Fraga, Tuca Andrada, Ary França, Fábio Herford, David Taiyu, Maristela Chelala, Romis Ferreira, Eduardo Estrela, Beto Matos, Renato Caldas, Luiz Ramalho e Rafael Faustino, obrigado por nos proporcionar diversão e reflexão da melhor qualidade!

 

 

Local: Teatro Sérgio Cardoso Rua Rui Barbosa, 153 | Bela Vista | São Paulo | SP
Sextas às 21h, sábados às 17h e 21h e domingos às 18h | Duração: 120 minutos

Ingressos: Sexta as 21h e sábado as 17h: Plateia Central R$ 60 | Plateia Lateral R$ 50 | Mezanino R$ 40
Sábado as 21h e domingo as 18h: Plateia Central R$ 80 | Plateia Lateral R$ 60 | Mezanino R$ 40